Competência para Julgar Contas do Prefeito Municipal
Publicado em 1 de junho 2015
Subtítulo: A Lei da Ficha Limpa criou a inelegibilidade por reprovação de contas de gestores públicos, aumentando a discussão sobre a competência dessa decisão.
A reprovação de contas dos gestores públicos passou a ser causa de inelegibilidade, com a edição da Lei da Ficha Limpa (leia mais aqui). Como a eleição de 2012 será a primeira de efetiva aplicabilidade da referida Lei, a discussão acerca da correta interpretação dessa causa de inelegibilidade (art. 1º, I, g[i], LC 64/90[ii]) aumentou, consideravelmente.
Sobressaem questionamentos acerca da competência do Parlamento para deliberar sobre as contas dos Chefes do Executivo, a possibilidade de revisão das decisões dos Tribunais de Contas, e de deliberação sobre aspectos não considerados por essas Cortes de Contas, e, ainda, a natureza do julgamento do Poder Legislativo nessa matéria.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já se manifestaram em relação à maioria desses temas, tendo firmado o entendimento de que o Parlamento é o Poder competente para decidir sobre as contas do Presidente, dos Governadores e dos Prefeitos, no tocante “tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas.”[iii]
Contas globais anuais x contas dos administradores.
O problema da definição da competência do Parlamento exsurge da distinção dessas duas modalidades de prestações de contas, discriminadas pelo art. 71, I e II[iv], da Constituição Federal (CF). A primeira (art. 71, I), diz respeito à prestação de contas anuais prestadas pelo Chefe do Executivo, enquanto o segundo tipo de contas (art. 71, II) é prestada por todo tipo de gestor público.
A primeira trata do balanço global de ordem financeira, orçamentária e patrimonial, prestado anualmente pelo Chefe do Poder Executivo. Já a segunda, a grosso modo, diz respeito à arrecadação e ao ordenamento de despesas praticados, em geral, pelos ministros, em nível federal, e secretários, nas searas estadual e municipal.
Em virtude dessa distinção prevista pelo referido dispositivo constitucional, respeitados juristas defendem a competência do Parlamento municipal para o julgamento, apenas, da primeira forma de contas, de modo que a apreciação final dos atos de gestão, mesmo que praticados pelos os Prefeitos, caberia aos Tribunais de Contas.
Essa compreensão saiu vencedora no julgamento do RMS n.º 11.060, da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça[1], no qual a tese defendida pelo ex-ministro Paulo Medina, acompanhado por mais dois ministros, venceu o posicionamento das Ministras Laurita Vaz e Eliana Calmon.
Ocorre que, esse não é o entendimento expressado pelas recentes decisões do STF.
No julgamento da Reclamação Constitucional n.º 10.455, o Ministro Celso de Mello suspendeu a eficácia de decisão do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará, a qual condenou Prefeito Municipal, tendo fundamentado seu entendimento nos seguintes termos:
“As contas públicas dos Chefes do Executivo devem sofrer o julgamento – final e definitivo – da instituição parlamentar, cuja atuação, no plano do controle externo da legalidade e regularidade da atividade financeira do Presidente da República, dos Governadores e dos Prefeitos Municipais, é desempenhada com a intervenção “ad coadjuvandum” do Tribunal de Contas.
A apreciação das contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo – que é a expressão visível da unidade institucional desse órgão da soberania do Estado – constitui prerrogativa intransferível do Legislativo, que não pode ser substituído pelo Tribunal de Contas, no desempenho dessa magna competência, que possui extração nitidamente constitucional.
A regra de competência inscrita no art. 71, inciso II, da Carta Política – que submete ao julgamento desse importante órgão auxiliar do Poder Legislativo as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta – não legitima a atuação exclusiva do Tribunal de Contas, quando se tratar de apreciação das contas do Chefe do Executivo, pois, em tal hipótese, terá plena incidência a norma especial consubstanciada no inciso I desse mesmo preceito constitucional.”[v]
Na Decisão do Recurso Extraordinário n.º 132.747/DF, o Ministro Marco Aurélio também defendeu a competência das Câmaras Municipais para julgar as contas de gestão do Prefeito Municipal:
“Nota-se, mediante leitura dos incisos I e II do artigo 71 em comento, a existência de tratamento diferenciado, consideradas as contas do Chefe do Poder Executivo da União e dos administradores em geral. Dá-se, sob tal ângulo, nítida dualidade de competência, ante a atuação do Tribunal de Contas. Este aprecia as contas prestadas pelo Presidente da República e, em relação a elas, limita-se a exarar parecer, não chegando, portanto, a emitir julgamento.
Já em relação às contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público Federal, e às contas daqueles que derem causa à perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo para o erário, a atuação do Tribunal de Contas não se faz apenas no campo opinativo. Extravasa-o, para alcançar o do julgamento. Isto está evidenciado não só pelo emprego, nos dois incisos, de verbos distintos – apreciar e julgar – como também pelo desdobramento da matéria, explicitando-se, quanto às contas do Presidente da República, que o exame se faz ‘mediante parecer prévio’ a ser emitido, como exsurge com clareza solar, pelo Tribunal de Contas.
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(…) O Presidente da República, os Governadores e os Prefeitos igualam-se no que se mostram merecedores do ‘status’ de Chefes de Poder. A amplitude maior ou menor das respectivas áreas de atuação não é de molde ao agasalho de qualquer distinção quanto ao Órgão competente para julgar as contas que devem prestar, sendo certa a existência de Poderes Legislativos específicos. A dualidade de tratamento, considerados os Chefes dos Poderes Executivos e os administradores em geral, a par de atender a aspecto prático, evitando a sobrecarga do Legislativo, observa a importância política dos cargos ocupados, jungindo o exercício do crivo em relação às contas dos Chefes dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais à atuação não de simples órgão administrativo, mas de outro Poder – o Legislativo.”
Essa matéria também foi suscitada pelos Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli na apreciação da Ação Direta de Constitucionalidade n.º 29, a qual teve como objeto a Lei da Ficha Limpa. Ambos ministros defenderam a necessidade de interpretação conforme a Constituição do art. 1º, I, g, LC 64/90, para reconhecer a competência da Câmara Municipal para julgamento das contas previstas pelos incs. I e II, do art. 71 da CF, dos Chefes dos Executivos.
Dias Toffoli foi o primeiro a analisar essa matéria, tendo concluído seu voto[vi], nesse assunto, nestes termos:
“Por essa razão, entendo que deva ser conferida interpretação conforme à parte final da alínea “g”, ora em discussão, para esclarecer que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuam como ordenadores de despesa, submetem-se aos termos do inciso I do art. 71 da Carta Federal.”
Já Gilmar Mendes conclui seu voto[vii] sobre matéria, da seguinte forma:
“Portanto, quando a alínea “g’ do inciso I do art. 1º da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135/2010, estabelece que deve ser aplicado o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição, “a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”, não se pode deixar de considerar o disposto no art. 71, I, da Constituição, o qual, conforme firme jurisprudência desta Corte, fixa a competência do Congresso Nacional – e, no âmbito dos Estados e dos Municípios, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, respectivamente – para julgar as contas do Chefe do Poder Executivo, sejam elas contas anuais ou as contas de gestão.
Assim, acompanho, nesse ponto, o voto do Ministro Dias Toffoli, para dar interpretação conforme a Constituição à parte final dessa alínea “g”, no sentido de que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuam como ordenadores de despesa, submetem-se aos termos do inciso I do art. 71 da Constituição.”
[1] De 25-06-2002.
[i] “Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
(…)
- g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;
(…).”
[ii] Lei Complementar Federal 64, de 18 de maio de 1990: “Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências.”
[iii] REspe n. 29.117/SC, Rel. Min. ARNALDO VERSIANI
[v] Reclamação Constitucional n.º 10.455, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ 18-10.2010 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=152&dataPublicacaoDj=18/08/2010&incidente=3926813&codCapitulo=6&numMateria=114&codMateria=2
[vi] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADC29DT.pdf
[vii] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/adc-29-30-lei-ficha-limpa.pdf