Rescisões trabalhistas em tempo de pandemia: quem paga a conta?
Publicado em 19 de junho 2020As medidas restritivas de prevenção à disseminação da pandemia do coronavírus (Covid-19) têm impactado diretamente a economia e, em alguns casos, a sustentabilidade de determinadas atividades econômicas, inclusive com a suspensão temporária de algumas atividades diretamente por meio de ato da administração pública.
Em decorrência desse cenário, alguns empregadores estão precisando reduzir o quadro de funcionários ou mesmo encerrar em definitivo suas atividades com a demissão em massa dos trabalhadores, tendo ainda que encontrar meios financeiros para poder fazê-los nos ditames da lei em meio à um momento recessivo.
Na busca por soluções que atendam às referidas necessidades, tem sido comum a discussão acerca de algumas “alternativas legalmente previstas” que supostamente transfeririam a obrigação do empregador de pagar as verbas rescisórias trabalhistas devidas ao trabalhador integralmente para o ente público, seja ele a União, o Estado ou o Município. Essas alternativas legais estariam consubstanciadas nos artigos 486 e 502, ambos da CLT.
Ocorre que a aplicação dos supramencionados artigos da CLT, conforme a doutrina e jurisprudência da Justiça do Trabalho não é exatamente como se tem sido publicitado, inclusive por autoridades públicas, senão vejamos.
II.1 – Artigo 486 da CLT (Fato do Príncipe)
O art. 486 da CLT tem a seguinte redação:
“Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
1º – Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.
2º – Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.
3º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum. “
O referido artigo trata sobre hipótese de ocorrência da denominada “Teoria do Fato do Príncipe”, que integra a “Teoria da imprevisão”, logo, a consequência jurídica enunciada no artigo só será aplicada caso os requisitos dessa teoria estejam presentes. Dessa forma, inicialmente, é necessário, como premissa, conceituar o que é Fato do Príncipe e compreender os requisitos caracterizadores.
No Direito do Trabalho, o Fato do Príncipe ocorre quando a Administração Pública impossibilita a execução da atividade do empregador e, por conseguinte, o contrato de trabalho, de forma definitiva ou temporária, por intermédio de lei ou ato administrativo. Se o Estado provoca a paralisação temporária ou definitiva do trabalho, deve responder pelo pagamento de indenização aos trabalhadores.
Para que haja a responsabilidade da Administração Pública é preciso que venha ocorrer o fechamento da empresa. Se isso não ocorrer, não haverá responsabilidade da Fazenda Pública. A paralisação de atividade não pode ser “parcial”. Se parte da atividade permanece sendo possível de ser realizada, adaptada à nova realidade, entende-se que não houve a caracterização da paralisação nos termos do referido artigo.
A paralisação da atividade tem de ser total, seja temporária (por algumas semanas ou meses, sem que interfira na sobrevivência do negócio no futuro) ou definitiva (que implique na extinção da atividade econômica ou do estabelecimento).
Todavia, é importante ressaltar que não basta só o fechamento da empresa, empreendimento ou atividade econômica, mas que esse fechamento decorra por Ato da Administração Pública, ainda que delegado, para que se caracterize a hipótese definida no artigo 486 da CLT.
Nesse contexto, importa destacar que para o caso em comento, algumas atividades não foram reguladas especificamente por nenhum dos Atos da Administração Pública, tanto na esfera Federal, Estadual e Municipal, especialmente os editados pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte.
Nos termos da Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, a competência para regulação das medidas a serem aplicadas em cada localidade passou a ser definida pelos Estados e Municípios.
Os diversos estados federativos editaram decretos regulando medidas de prevenção a serem aplicadas em sua territorialidade, visando coibir a disseminação do vírus. Alguns, chegaram a desautorizar o funcionamento de certas atividades, porém tantos outros, mantiveram a permissibilidade de funcionamento, desde que atendidas as medidas de proteção aos seus empregados, clientes e terceiros.
Dada tais circunstâncias, na análise da aplicabilidade do Fato do Príncipe prevista no art. 486 da CLT, é de extrema importância consultar os atos da administração para se atestar se de fato interferiram diretamente na manutenção da atividade econômica exercida. Caso contrário, não estar-se-á a se enquadrar na hipótese de do Fato do Príncipe prevista no art. 486 da CLT, uma vez que a paralização temporária, ou até eventualmente definitiva, não decorreu, e nem decorre, de ato direto da Administração Pública, ainda que tenha havido, e há, de fato, uma paralização até então temporária e que poderá ser definitiva por falta de clientela.
Ainda que diferente seja – verificada a ocorrência de todos os requisitos necessários para aplicação do art. 486 da CLT – qual ou quais obrigações competirão a responsabilidade da Administração Pública? Estará o empregador dispensado de pagar verbas rescisórias?
A resposta é NÃO.
Importa esclarecer que o art. 486 da CLT dispõe somente que apenas “a indenização” ficará a cargo da Administração Pública e não outras verbas. O eventual enquadramento no supracitado artigo da CLT não implicaria na isenção quanto a obrigação de pagamento de todas as verbas rescisórias devidas ao trabalhador no momento da rescisão contratual. Isso porque, existe uma confusão no senso comum do que seria a referida “indenização”.
A indenização a que se refere o art. 486 da CLT remete-se à sistemática garantista existente em período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, prevista para os casos de rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do empregador, sem justa causa. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi instituído o sistema indenizatório do FGTS, com previsão da multa rescisória dos 40%, em substituição àquele. Passado o período de transição, atualmente o sistema vigente é o do FGTS.
Conforme entendimento da doutrina majoritária, aqui representada pelo jurista Maurício Godinho Delgado, pela jurisprudência trabalhista e até mesmo da Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia através da Nota Informativa SEI nº 13448/2020/ME, a indenização referida no dispositivo “corresponde àquelas antigas da CLT, por tempo de serviço (caput dos arts. 477 e 478) ou por tempo de serviço e estabilidade (arts. 492, 497 e 498, CLT)”. Delgado ainda inclui neste grupo a indenização pela rescisão antecipada dos contratos a termo (art. 479, CLT)[1].
Nesta senda, importante ressaltar que a atual redação do art. 486 foi dada pela Lei nº 1.530, de 26 de dezembro de 1951. À época, o caput do art. 477 tinha a seguinte redação (grifos nossos):
“Art. 477. É assegurado a todo empregado, não existindo prazo estipulado para a terminação do respectivo contrato, e quando não haja ele dado motivo para cessação das relações de trabalho, o direito de haver do empregador uma indenização, paga na base da maior remuneração que tenha percebido na mesma empresa.”
No sistema indenizatório anterior à Constituição Federal de 1988, a indenização do art. 477 era, portanto, própria aos contratos de duração indeterminada de mais de um ano de duração, sendo devida na rescisão que não resultasse de motivos provocados pelo trabalhador. A redação do art. 478, por sua vez, define o valor dessa antiga indenização prevista por tempo de serviço: “a indenização devida pela rescisão de contrato por prazo indeterminado será de 1 (um) mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a 6 (seis) meses”.
Com efeito, se fosse reconhecida o enquadramento da paralização de determinado empreendimento ou atividade empresarial na hipótese de que trata o art. 486, a indenização que passaria a ser de responsabilidade do ente estatal seria aquela do art. 478 para os trabalhadores ainda estáveis, e, para os não estáveis, a indenização do FGTS (multa dos 40%) prevista no art. 18, §1º, da Lei nº 8.036/90, apenas. Restaria ao empregador o pagamento de todas as demais verbas rescisórias ordinariamente devidas e obrigações legais, estando inclusive sujeito às penas da lei se descumpridas.
Importa destacar ainda, que do ponto de vista operacional, o empregador que entender ser aplicável o Fato do Príncipe à sua situação, fará a rescisão dos contratos de trabalho e não pagará apenas a multa de 40% do FGTS. Caso haja ação na justiça do trabalho, em que o trabalhador vier a pleitear o pagamento pelo empregador da respectiva verba, este deverá invocar o Fato do Príncipe em sua defesa, e requerer o ingresso do ente Público (responsável pelo ato que lhe prejudicou) no polo passivo da ação, para que este responda pela indenização.
Caso a justiça do trabalho, ao analisar a ação, entenda que não seja hipótese que se encaixa na teoria do Fato do Príncipe, o empregador poderá ser condenado ao pagamento da verba indenizatória não paga na rescisão, arcar com a multa pelo atraso no pagamento das verbas rescisórias prevista no § 8º do artigo 477 da CLT, no valor de um salário do empregado, mais custas processuais na proporção de 2% sobre o valor da causa e honorários advocatícios sucumbenciais a serem arbitrados pelo Magistrado na proporção de 5% (cinco por cento) a 15% (quinze por cento). Ademais, poderá ter que arcar, ainda, com o pagamento de indenização por eventuais danos sofridos em decorrência do não pagamento da referida verba, desde que sejam comprovados pelo empregado.
Cabe pontuar que a prática jurisprudencial raramente tem acolhido essa modalidade de ruptura do contrato, uma vez que considera as modificações e medidas legais e administrativas do Estado, que possam afetar a empresa, mesmo gravemente, como parte inerente da função do Estado de prover a saúde da coletividade.
II.2 – Artigo 502 da CLT (Força Maior)
O artigo 502 da CLT, por sua vez, assim prescreve:
“Art. 502 – Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte:
I – sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478;
II – não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa;
III – havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.”
A força maior está disciplinada nos arts. 501 a 504 da CLT. Ela representa hipótese de atenuação da regra de assunção dos riscos pelo empregador. O art. 502 é o que trata especificamente da força maior enquanto motivo de rescisão de contrato de trabalho e estabelece a possibilidade de redução pela metade do valor da indenização rescisória devida ao trabalhador, estáveis e não estáveis.
No âmbito trabalhista, força maior é o acontecimento inevitável e impreterível, em relação à vontade do empregador, para cujos efeitos este não concorreu, direta e indiretamente, sendo impossível evita-los ou impedi-los. Por esse conceito, entendemos que a pandemia do coronavírus é uma situação de força maior e que certamente está afetando a manutenção e permanência da atividade de diversos empregadores.
Contudo, a sua aplicabilidade aos casos de demissão motivados pela pandemia do coronavírus ainda depende da ocorrência de um requisito estabelecidos no art. 502 da CLT, que é a “extinção da empresa ou estabelecimento”.
Diferentemente do art. 486 da CLT cuja aplicação do Fato do Príncipe prescinde da paralisação total, temporária ou definitiva da atividade, o art. 502 da CLT, exige a extinção da empresa ou estabelecimento para sua aplicação sob o fundamento da Força Maior.
Observe que o legislador fez questão de não só diferenciar os casos como imprimir-lhe a necessidade de formalização do encerramento definitivo da empresa ou estabelecimento, do contrário teria também utilizado a expressão “paralisação”. E nos termos do Código Civil, em seu art. 51, o processo de extinção de uma empresa ou estabelecimento é um procedimento complexo e o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica ocorre apenas após sua liquidação. A formalização desse procedimento tem por início a averbação da dissolução no registro onde a pessoa jurídica estiver inscrita.
A Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia através da Nota Informativa SEI nº 13448/2020/ME, inclusive, tem orientado os Auditores Fiscais do Trabalho a somente aceitarem a aplicação do art. 502 como fundamento para pagamento pela metade da indenização devida ao trabalhador caso o empregador comprove já ter dado início a averbação da dissolução junto ao seu registro.
Caso seja de interesse do empregador a aplicação dessa alternativa legal para reduzir os custos com eventual rescisão contratual de trabalho de seus empregados, deve antes avaliar se ainda persiste o ânimo da manutenção da atividade empresarial, pois do contrário, não será possível arguir a Força Maior. E principalmente, deve ter iniciado o processo de formalização da extinção.
Registre-se, que da mesma forma que a hipótese prevista no art. 486 da CLT, a referida indenização a que se refere o art. 502 da CLT, refere-se à também multa de 40% do FGTS, prevista no art. 18, §1º, da Lei 8.036/90.
Nesse caso, inclusive, a própria legislação fundiária elimina qualquer dúvida quanto a natureza da referida indenização citada no art. 502 da CLT, senão vejamos:
“Art. 18. Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho, por parte do empregador, ficará este obrigado a depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS os valores relativos aos depósitos referentes ao mês da rescisão e ao imediatamente anterior, que ainda não houver sido recolhido, sem prejuízo das cominações legais.
1º Na hipótese de despedida pelo empregador sem justa causa, depositará este, na conta vinculada do trabalhador no FGTS, importância igual a quarenta por cento do montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos juros.
2º Quando ocorrer despedida por culpa recíproca ou força maior, reconhecida pela Justiça do Trabalho, o percentual de que trata o § 1º será de 20 (vinte) por cento.
3° As importâncias de que trata este artigo deverão constar da documentação comprobatória do recolhimento dos valores devidos a título de rescisão do contrato de trabalho, observado o disposto no art. 477 da CLT, eximindo o empregador, exclusivamente, quanto aos valores discriminados.”
Assim como ressalvado na explanação referente a aplicação do art. 486 da CLT, que do ponto de vista operacional, o empregador que entender ser aplicável a Força Maior à sua situação e pretender extinguir a pessoa jurídica com a respectiva formalização junto aos órgãos de registro civis, fará a rescisão dos contratos de trabalho e não pagará integralmente apenas a multa de 40% do FGTS. Caso haja ação na justiça do trabalho, em que o trabalhador vier a pleitear o pagamento pelo empregador da outra metade da multa dos 40% do FGTS, este deverá invocar a Força Maior em sua defesa.
Caso a justiça do trabalho, ao analisar a ação, entenda que não é hipótese que se encaixa na teoria da Força Maior, o empregador corre o sério risco de ser condenado ao pagamento da verba indenizatória não paga na rescisão, arcar com a multa pelo atraso no pagamento das verbas rescisórias prevista no § 8º do artigo 477 da CLT, no valor de um salário do empregado, mais custas processuais na proporção de 2% sobre o valor da causa e honorários advocatícios sucumbenciais a serem arbitrados pelo Magistrado na proporção de 5% (cinco por cento) a 15% (quinze por cento). Ademais, poderá ter que arcar, ainda, com o pagamento de indenização por eventuais danos sofridos em decorrência do não pagamento da referida verba, desde que sejam comprovados pelo empregado.
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS:
- Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05 de junho de 2020.
- Consolidação das Leis do Trabalho (2017). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm. Acesso em: 05 de junho de 2020.
- Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- Lei 8.036, de 11 de maio de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8036consol.htm. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- Nota Informativa SEI nº 13448/2020/ME. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/6/3D1C3CA1D5865C_notainformativa.pdf. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 29.541, de 20 de março de 2020. Disponível em: http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20200321&id_doc=678003. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 29.583, de 01 de abril de 2020. Disponível em: http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20200402&id_doc=678994. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 29.634, de 22 de abril de 2020. Disponível em: http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20200423&id_doc=680833. Acesso em: 05 de junho. 2020.
- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2019.