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O Ativismo Penal e o Supremo Tribunal Federal: súmulas do passado e a criminalização da homofobia

Publicado em 22 de fevereiro 2019

Os crimes e as penas a eles impostas estão historicamente descritos na lei. Antes de uma tradição, a necessidade de definir legalmente quais condutas são criminosas consiste em um valor sedimentado na raiz das ciências jurídicas.

As leis penais conferem ao Estado o poder de, ao aplicar as penas, retirar bens valiosos dos cidadãos. O fundamento para tanto encontra lugar na vontade democrática. Por isso mesmo, não haveria outra maneira mais apropriada e legítima de levar à prisão um indivíduo senão por decorrência de lei, debatida e aprovada pelos representantes do povo.

A ideia surge como uma alternativa à tirania. Os pensadores iluministas e, entre eles, Cesare Beccaria, especialmente, defendiam o império da lei no lugar do império do tirano absoluto. Assim, não haveria mais lugar para que uma ou poucas pessoas fossem capazes de decidir sobre a vida e a liberdade dos cidadãos de acordo com suas conveniências e arbítrios particulares.

Ganha protagonismo a partir de então os parlamentos eleitos pelo sufrágio universal como titulares do poder de criminalizar comportamentos e a eles impor penas. Por outro lado, ao Executivo o dever de obedecer e limitar-se às leis na execução das sanções penais, mobilizando recursos e agentes estatais para eficácia da ordem jurídica.

Porém, o objeto desse ensaio é discutir o que coube ao Judiciário e o que ele vem fazendo no Brasil enquanto jurisdição penal.

Em princípio, ao Judiciário cabe conduzir os processos penais, observar o respeito aos direitos fundamentais na persecução desde a fase do Inquérito (investigação) e, conforme a lei, aplicar uma sentença após garantir um processo com amplo direito de defesa e observância do contraditório das partes.

Portanto, na minha compreensão de como as coisas deveriam ser, o Judiciário é muito mais um agente de garantia da devida aplicação da lei sob os ditames da Constituição do que a figura de um inquisidor. Afinal, foi disso que o ocidente fugiu desde a obra célebre de Beccaria no século XVIII.

No entanto, conhecer como as coisas são vem me atraindo mais do que conhecer como elas deveriam ser, e, nessa perspectiva, o Supremo Tribunal Federal -STF vem redesenhando o papel do Judiciário brasileiro quanto ao Direito e ao Processo Penal.

Vejam que, em 1984, a Súmula 610 foi editada com a seguinte redação: “há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima”.

O texto redefine toda uma construção teórica do iter criminis (caminho do crime) admitindo a consumação de um crime contra o patrimônio sem a subtração do bem da vítima, o que, por decorrência lógica, riscou do texto do Código Penal brasileiro o art. 14, I, ou reescreveu o então vigente art. 157, § 3º, que tipifica a conduta conhecida como roubo preterdoloso com resultado morte (latrocínio).

A mesma Súmula faz ainda uma confusão curiosa, condicionando o novo momento consumativo do latrocínio à consumação do homicídio, o que nos leva sempre a perguntar: afinal, foi homicídio ou latrocínio?

Não há lugar para os dois, pois a morte não é dolosa no latrocínio e, muito menos, é um monopólio do tipo penal do homicídio. A morte é fato juridicamente relevante para vários tipos penais na legislação brasileira – infanticídio, aborto, instigação, induzimento e auxílio ao suicídio e demais figuras preterdolosos com esse resultado –, mas os ministros da época conheceram apenas do art. 121 do Código Penal e ignoraram que, para além dele, havia outras centenas de dispositivos.

Enfim, o tempo passou e a Suprema Corte assim permaneceu. O gesto de reescrever a lei penal e a confusão de elementos bases da normatividade penal são vistos em decisões de 2018: “Em relação à tese de latrocínio tentado, o caso se resolve com a aplicação da Súmula 610 desta Corte: ‘Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima’” (ARE 1172235/RS).

Outra curiosidade mais recente foi a edição da Súmula 711, de 2003: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”.

Posicionamento muito interessante quanto ao crime permanente, aquele cuja execução se estende no tempo, mantida a unidade delitiva. Contudo, sem sentido algum quanto ao critério de cálculo de pena fixado no art. 71 do Código Penal, chamado pelo próprio legislador de crime continuado.

Em outras palavras, faz sentido dizer que a lei penal aplicável em um crime de sequestro e cárcere privado (crime permanente) é aquela vigente no resgate ou na libertação da vítima, o que pode demorar meses e anos para acontecer, permanecendo como um único e mesmo crime praticado. Por outro lado, é no mínimo curioso achar que para um arrastão, em que há uma série de distintos furtos e roubos, seja relevante admitir que a lei aplicável será a vigente no último delito, pois é difícil imaginar ladrões com um vigor físico e mental suficiente para praticar sucessivos assaltos ininterruptamente por dias, meses e anos, sem tempo para repouso ou proveito dos bens obtidos com o crime.

Esse e outros posicionamentos do Supremo Tribunal Federal transmitem uma imagem de descuido com os institutos penais e sua logicidade sistêmica. Mostra também uma postura alheia à separação dos poderes quando desacredita o parlamento enquanto titular legítimo do poder de definir os limites do jus puniendi.

Não obstante, quem chegou até aqui deve estar ansioso por saber a respeito do julgamento em curso relacionado à criminalização da homofobia.

A última notícia recebida por ocasião da elaboração deste texto é de o resultado parcial está em 4 votos a favor da criminalização de condutas homofóbicas no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 e do Mandado de Injunção n.º 4.733. Os autores sustentam haver violação de direitos fundamentais da comunidade LGBT devido à inexistência de uma tipificação penal de comportamento homofóbico em contraste com o tratamento dado pela legislação à discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, condutas descritas como crime na Lei Federal n.º 7.716, de 1989.

Ainda que o Ministro Celso de Melo tenha procurado esclarecer que “(…) não se está construindo um novo preceito primário de incriminação (…)”, os votos já proferidos, inclusive o seu, caminham na direção de alargar o disposto no art. 1º da mencionada lei penal, fazendo nele conter a discriminação ou preconceito por orientação sexual ou transexualidade, ausente do texto normativo.

Caso o julgamento seja confirmado nesse sentido, o STF terá mais uma vez reescrito tipos penais, porém, desta vez, de forma bastante explícita sob o pretexto de um aberto conceito de supremacia da Constituição sobre si mesma. O combate à homofobia e a todas as suas consequências nefastas não se trata de um tema sem importância constitucional, mas também não falta importância para a defesa da higidez do Direito Penal democrático, impondo-se presente a garantia fundamental à reserva legal, prevista no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Por mais nobre que seja a intenção dos Ministros, a ordem democrática é valiosa por si e não admite que o STF reescreva a legislação penal e a própria Constituição a sua maneira, qual seja: “não há crime nem pena até decisão do Supremo Tribunal Federal”.

Cabe esperar que a conclusão do julgamento seja instar o Poder Legislativo a se manifestar sobre a matéria, conforme anterior pedido sucessivo presente nas ações constitucionais propostas. Assim, ficarão no passado, ainda que às vezes nos assombrem no presente, os erros e ativismos discutíveis da Suprema Corte em matéria penal, bem como não voltarão os tempos nos quais poucas pessoas detinham o enorme poder de definir crimes e a eles cominar penas.

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